novembro 09, 2005

Itaquai River



Picture by Nicholas Reynard.

Vale do Javari, rio Itaquaí, Amazônia.

Terra Indigena Vale do Javari.
Onde vivem índios Matis, Marubo, Kanamary, Mayoruna/Matsés, Korubo, Kulina e Tsohom Djapá. Morei 9 meses pela região, fazendo meu trabalho de campo para o mestrado e o doutorado em Antropologia em 2006 e 2009. Estive lá pela primeira vez em 2003! Paixão a primeira vista pelo lugar e pelas pessoas extraordinárias que lá v.ivem

novembro 08, 2005


Barbara e quati Posted by Picasa

Londrinenses I

Luciola abre a janela devagar, primeiro a cortina, depois a janela de vidro, doble-glass para manter o calor. Mas hoje nem se os vidros fossem quíntuplos ajudaria, pois o frio lá fora é de menos 5 graus e o daqui de dentro, debaixo da camiseta de algodão e do sutiã branco, é de aproximadamente 50 graus negativos. Luciola amanheceu com uma pequena neve dentro do peito, precisa abrir a janela e respirar um pouco do ar gelado lá de fora, quer sair de casa, quer sair da ilha onde encontra-se. De novo, lembra-se de si mesma recolhendo as maçãs podres caídas no jardim dos fundos da casa da Fulham Palace Road. A dona da casa, que aqui como herança medieval o povo chama de land lady, pensou que Luciola queria um dinheiro extra e deu a ela um desconto, essa semana pagaria apenas 30 libras pelo aluguel do minúsculo quarto. Luciola passou 4 horas recolhendo as maçãs marrons do jardim. Um cheiro antigo que sempre retorna com o jardim de novo coberto de maçãs estragadas. Luciola pensa em escrever uma longa carta para sua mãe, explicando porque desistiu de ser arquiteta, porque não quer mais ir à faculdade, porque que não quer mais ficar noites inteiras debruçada sobre a prancheta e fazer lindas maquetes de papel que acabam abarrotando as cestas de lixo dos professores mais chatos da universidade. Mas já não tem mais tempo, precisa desesperadamente abrir a janela e descer pelo cano da calha para chegar ao primeiro andar de uma forma diferente que não seja o convencional pé-ante-pé no tapete vermelho e surrado da escada que leva ao segundo andar, onde está seu pequeno quarto. Luciola sente o calor do aquecedor. Lá fora, os carros estão cobertos por uma camada de gelo e por algumas folhas que desistiram de pendurar-se nas árvores quase carecas. Ela decide testar se a calha está presa na parede. Suficiente. Primeiro uma mão no metal frio, depois a direita no peitoril da janela. Um pé para fora, abraço com os dedinhos a calha, outro pé. De frente para a parede, aperto o cano estreito e deslizo um pouco. Alcanço a primeira braçadeira de metal que prega o cano à parede. Ok. Agora é mover-se como um macaco daqueles do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e descer devagar até alcançar o chão e pisar - com azar - exatamente sobre uma das maçãs podres do jardim que a neve começa a cobrir de branco. “Bom dia, meu nome é Luciola e eu moro em Londres há dois anos, sem sair, claro, sem sair dessa ilha física e mental na qual resolvi exilar-me. Mas vamos logo com essa introdução que eu não posso perder tempo porque o Simon, um idiota que é meu chefe e gerente do Bella Ciao, vai me matar se eu chegar de novo atrasada. Tiro os pedaços da maçã que colaram na sola da minha meia e preciso calçar meu sapato preto fechado coberto de cera de vela dos candelabros do restaurante. Não tenho tempo de voltar ao segundo andar, devo subir na bici e sair logo já o mais rápido possível. Enzo que mora no primeiro andar da mesma casa que eu me espia pela janela e acena. “Ciao, Enzo, ci vediamo”. Lá vou eu pedalando na contra-mão britânica meus 40 minutos habituais para chegar a tempo em Covent Garden.

Luciola deixa a bicicleta presa com cadeado nas grades da Piazza, aqueles fundos de cemitério com os restos mortais dos ingleses que morreram de peste, lúgubre recanto com lápides de pedra e musgo a poucos metros de Convent Garden e seus cafés abarrotados de turistas. Ela cumprimenta dois homens que se preparam para entrar em cena. Um joga malabares enquanto o outro com um nariz de bola vermelha equilibra-se em um monociclo. O palhaço tira do bolso do paletó um saquinho e faz cair sobre ela uma chuva fininha de purpurina prateada. Luciola sorri e manda um beijo. O palhaço simula uma queda e recebe uma salva de palmas. Luciola não olha para trás, porque o gerente do pub já está esperando por ela na porta.

“Hey, Simon, há quanto tempo…” O inglês já está mal humorado, incrível, vive mal humorado esse cara. Luciola nem pára, passa direto a seu lado e vai para o vestiário, uma micro sala que fica logo adiante da despensa e da adega, um cheiro de chulé misturado com roupas suadas e cebolas fritas. Lá dentro, apertam-se Carlo, Andrea e o cozinheiro Charlie. “Catzo, não tem lugar para você, garota, vai trocar de roupa no banheiro feminino.” “Ok, só preciso de minhas roupas que estão no armário.” Segue para o banheiro, espera uma cliente sair para finalmente trocar de roupa e colocar saia, meia e o eterno sapato preto fechado “que deve ser horrível, por motivo e requisito de segurança do mau gosto inglês”, gravatinha borboleta, camisa branca e avental com bolsos para colocar gorjeta, dinheiro, bloco e caneta. “Vamos lá, hoje quero fazer 50 libras em gorjeta, positive vibration.”

A noite começa mal. Uns chatos italianos sentaram-se na melhor mesa, com vista para a estreita Henrietta Str. Italianos sempre comentam que a comida não é veramente italiana. “Ora, que idéia idiota vir da Itália para comer spaghetti em Londres, mas enfim há loucos para tudo e parece que muitos deles escolheram vir jantar aqui…” O problema maior é que eles não deixam gorjeta, invariavelmente comentam que a comida é ruim, reclamam da temperatura do vinho, pedem para não pagar o capuccino ou o espresso e ainda saem sem se despedir ou deixar ao menos 10 cents em cima da mesa. Um saco atender italianos, mas tudo bem, positive vibration é o lema dessa noite. Em menos de 30 minutos, o restaurante lota, o primeiro andar está abarrotado, o sub-solo logo enche também. Somos três garçons a correr feito loucos, trazendo velas, limpando mesas, cinzeiros, trazendo pratos que queimam da cozinha. Discuto com Charlie, o cozinheiro jamaicano. Ai, não aguento mais esse cara me convidando para sair enquanto eu tento evitar de queimar meu braço e peço mais parmesão em cima dos tortelloni. Logo, faço a primeira burrada da noite, anoto filés para uns caras que pediram lasanha, tenho de chamar o Simon e pedir para ele apagar o pedido da caixa registradora, ouço um resmungo que interpreto como “chicken with no head”. Ora, galinha sem cabeça é a mãe dele, qual é? E tenho de fazer de conta que não ouvi, segue o baile que ainda não são nem 10 horas.

Escuto atrás do balcão do bar a voz rouca de Andrea que pede para que eu o ajude pois está sobrecarregado de pedidos. Ele sacode a coqueteleira e pede para que eu sirva dois sorvetes com creme, biscottini, calda de chocolate. Aperto a tampa de pressão do creme, mas não sai nada, sacudo com força até cansar o braço. Quando aperto de novo, sai uma porção absurda de crème que cobre a metade do balcão. Andrea me olha furioso e começa a praguejar em italiano, o que é muito melhor, mais harmônico e interessante que qualquer ópera em cartaz no West End. “Madonna, porco santo, Dio mísero, Non ce la faccio piú, Madoooonnnnnna”. Peço desculpas, sirvo outra taça com as bolas de baunilha e deixo a taça inundada de crème dentro da pia com água escaldante. Andrea pede para eu limpar a pia e fazer capuccinos, em menos de cinco minutos estou transformada em um daqueles desenhos animados com cinco braços onde cada uma das mão faz uma coisa diferente da outra, abro um vinho Chianti, coloco água quente no bule e um saquinho de chá, potinho para o leite, polir dois cálices de vinho Bordeaux, agora faço o leite virar espuma, foaming na temperatura exata, mas a temperatura ideal era de 40 ou 60 graus???

Carlo que a essa altura já está também praguejando, porém em napolitano, pede que eu volte para o salão porque meus clientes estão todos de cara feia olhando para a porta, arriscando sair correndo do restaurante sem pagar a conta se eu não voltar para perguntar se eles querem um café ou doces. Lá vou eu escadas acima para dar um tropeção na ponta da escada e cair abraçada nas pernas de uma mulher loira que me olha apavorada com medo que eu tenha estragado suas meias de seda especialmente compradas na loja chique Miss Selfridges. Nem preciso contar que o Simon, claro, estava atrás da mulher mostrando a ela onde fica o sub-solo do restaurante onde o marido dela, provavelmente algum investidor da Bolsa de Valores está sentado com a amante bebendo champagna e fumando um charuto. Ai, vida dura, depois dessa vou pedir asilo político na cozinha, peço para tirar meu ‘brake’, que é como chama-se os quinze minutos de alforria aos que tenho direito para comer a galope um pão ciabatta coberto de tomate seco e um prato fundo com penne rigate afogado em molho braco. Charlie pisca o olho e pergunta se quero comer salmão, que ele coloca escondido no fundo do prato, já que não é permitido aos garçons comer salmão. Digo que não, quero sem salmão, estou tão desolada e cansada, com tamanha dor nos pés que nem tenho força para ser repreendida caso aquela besta do Simon resolva inspecionar minha comida, revirar meu prato de massa praticamente de cabeça para baixo porque sentiu o cheiro de salmão e quer me repreender para que “de uma vez por todas, eu aprenda que os garçons não podem degustar salmão mesmo quando estiver vencido”. “It is all right, Charlie, só ciabatta com pomodori e penne com molho branco is fine”.

Pego meu prato e vou pro sub solo, arrasto uma cadeira para uma espécie de calabouço com vista para o céu laranja de Londres. Apenas uma fresta de céu, felizmente vejo o céu sem grades, o que já é um alívio. Felizmente, daqui a mais 3 horas e meia estarei pedalando de novo com destino à casa de meus amigos queridos que me convidaram para uma festa de squatters e que eu não vou perder de jeito nenhum. Vamos lá, Luciola, voltamos ao tema principal da noite, positive vibration, minha irmã. Você não veio de tão longe para ficar aqui chorando nos fundos do sub-solo do restaurante, justamente ao lado do muro do cemitério de Covent Garden. Lembra-se do filme aquele onde os mortos falam Carpe Diem, Carpe Diem. Aproveite o Dia, Positive Vibration. Nos cinco últimos minutos da minha pausa, aparece o Bantô. Ele é como um bruxo, nascido em Burkina Fasso, tem nas bochechas dois cortes verticais e um perto das têmporas. É bonito e quase não fala inglês. Ele senta-se mudo a meu lado e nota que estou prestes a chorar. Não fala uma palavra, me olha com seus olhos gigantes e pisca devagar. Vou me acalmando. Bantô olha para a fresta de céu também. Respira o ar frio da rua e aperta o cachecol de lã que a mulher dele tricotou. Olho para o céu de novo e são tantas lâmpadas refletidas e tantas núvens paradas umas sobre as outras que não consigo pensar em outra coisa a não ser na impossibilidade de sair voando. O barulho de algo que acaba de quebrar na cozinha me chama de volta para a realidade do restaurante. Deixo Bantô sozinho do lado de fora e volto para o calor e para os cheiros do salão repleto de mesas e cadeiras ocupadas.

Vou direto para a cozinha saber como estão os pedidos e se está mais ‘busy’ no andar de cima ou no sub-solo. Volto para minhas mesas, tem um casal novo que parece estar em lua de mel. Ótimo, casais apaixonados são generosos em gorjetas. Ofereço um Chianti e eles aceitam. Simon também observa o casal e resolve atender a mesa. Trago a garrafa e as taças para sacar a rolha na mesa, mas Simon me pára no caminho e diz que ele mesmo vai abrir a garrafa. Quero matar o imbecil, porque ele vai fazer isso para ficar com a minha gorjeta. Tudo bem, positive, vou manter a calma. Ele faz toda uma encenação, serve primeiro a taça da mulher, espera que ela prove o vinho, pisca para o homem, ela sorri. Ele enche também a taça Bordeaux do homem que a essa altura já pretende se livrar do Simon e pega na mão da mulher antes de brindar. Simon finalmente anota o pedido deles, salada Caesar, bruschetta e risoto de funghi. O cretino passa por mim sem me encarar. Ele larga o papel do bloco com uns garranchos indecifráveis em cima da caixa, isso quer dizer que eu ainda por cima terei de passar o pedido para a registradora e checar na cozinha se está tudo ok.

É cada vez mais difícil manter a mente sã em um calor escaldante, subir a mil por hora a escada que liga o bar ao salão térreo equilibrando duas doses de sambuca flambado, ou seja, literalmente pegando fogo, e mais duas taças de cappucino transbordando e encharcando os pires que deveriam estar imaculadamente brancos e secos. Consigo colocar os copinhos de sambuca na mesa sem queimar completamente meus cinco dedos, só três deles. Tento dar um sorriso, sou simpática, incrível. Vou voando escada abaixo buscar mais dois cappucinos porque aqueles dois que levei antes viraram uma sopa de leite quente no pires.

Vejo Carlo e Andrea em plena produção de seis cappucinos e capto a mensagem, será noite de vender café sem registrar. Carlo foi quem teve essa idéia sublime de ganhar uns ‘pounds’ a mais pedindo os cafés direto no bar para que o Andrea os faça sem ter registrado o pedido. Resolvo adotar a mesma tática porque essa noite já está virada num caos mesmo e se o Simon sacar o que estamos fazendo não vai fazer nenhuma diferença, já estamos ferrados de qualquer modo. Então começamos super gentis a oferecer cappucinos para todo mundo e anotamos os preços a caneta, no pé da conta. O que não é registrado na caixa não precisa ser pago para o restaurante no final da noite e assim ficamos com o dinheiro extra nos bolsos de nossos aventais. O café não é controlado da mesma forma como os vinhos e os pedidos de cozinha. Assim, fazemos uns sessenta pounds, que iremos dividir com o Andrea depois do expediente em um bar de blues no Soho que fica aberto depois do toque de recolher das 11 da noite.

Centenas de lasanhas, capeletis, espaguetis, penne rigate, tricolori, risotos e umas trezentas bruschettas e ciabatas depois, o movimento começa a diminuir. Meus pés já passaram da fase que doiam, eles já estão pedindo clemência e preciso ir ao banheiro agora mesmo para ver se adianta colocar um pouco de papel higiênico na ponta do sapato e em cima das costuras. Os pobres pés devem estar gangrenados, prontos para amputação imediata. Abro a porta e encontro uma mulher sentada no chão da toalete, embaixo da pia. Ela tem uma saia bem curta de veludo vermelho e está com a cabeleira loira cobrindo o rosto. Sento a seu lado e fico mais calma ao tocar suas mãos e constatar que estão quentes, morta a mulher não está. Uffff, menos mal. Seguro sua cabeça com ambas mãos e dou de leve uma palmada, ela acorda, me olha com olhos azuis pálidos e pede água. Faço uma conchinha com a mão e deixo ela molhar os lábios. Ela pede para eu ajudá-la a levantar. “Yes, madam.” Tenho de rir de mim mesma, preocupada que alguém entre no banheiro e veja a gente abraçada. A mulher diz que bebeu demais, pergunta se eu posso chamar um táxi. “Yes, madam.” Estou morrendo de dor nos pés, mas saio de novo, lá fora o frio de menos 4 graus, da frente do restaurante aceno para um dos taxi cabs. Assim que o cara estaciona, peço para ele esperar e explico que a mulher que irei chamar está no trago e precisa ir para casa. “Ela sabe o endereço?” Volto para o banheiro, pergunto para a mulher se ela lembra o endereço, ela abre a bolsa e pede para eu pegar a carteira e checar se tem um cartão no bolsinho das moedas. Tem. Ela pega a carteira e puxa uma nota de cinquenta libras, coloca a nota na minha mão, agradece e vai cambaleando, cruza o salão até a porta. Atravessa a calçada com esforço. Entra no cab e entrega o cartão com o endereço para o motorista.

Nem acredito que ganhei 50 libras assim na manha. Desço para o sub-solo e temos de fechar o caixa. Tiramos do bolso um grande bolo de notas, libras e mais libras, as moedas também são um peso morto no avental. Pago o valor dos pedidos em meu nome e conto 35 libras de gorjeta, fora o que fizemos ilegalmente com os cafés não registrados. Meio mal para uma noite de correria infernal, lembro-me feliz dos 50 da senhora bebum. Vou trocar de roupa, me despeço do povo da cozinha, agradeço em silêncio ao bruxo Bantô, dou mais 15 libras para o Andrea, não vou ao Soho. Estou morta de cansaço. Saio arrastando um sacão de lixo e umas caixas de papelão. Desisti da festa dos squatters. Rumo: casa. Pego minha bici, solitária presa às grades da Piazza. Vou pedalando, cruzo o Saint James Park, vou por fora do Hyde Park, desço a Exhibition Road, pego a direita, pedalo e pedalo na noite fria e chego nos habituais 40 minutos. Britânico esse meu trajeto, incrível! Os italianos loucos que ocupam o primeiro andar da casa estão cozinhando a essa hora! Estou morta de sono e com os dedinhos do pé em frangalhos, mas aceito tomar um cappucino feito pelo Piero.

Entro pé ante pé na penumbra, dorme minha companheira de quarto, não posso fazer barulho, não devo acordar a Mirjana, porque ela começa cedo na sanduicheria. Caio morta na cama sem tomar banho.

Manhã seguinte, sol pela janela, esqueci de fechar a cortina. Talvez sejam umas onze da manhã. Mal tenho tempo de tomar banho e saio voando para a aula de inglês na bendita escola publica de Kensington. Bairro chique, colegas chatos, o bom é que fica no meio do caminho para o restaurante. Não consigo concentrar a atenção no professor que explica algo sobre os diferentes tipos de “If”, condicional maldito. Anoto em meu caderno vários exemplos que vão surgindo sem qualquer ordem em minha cabeça oca… If I was rich, I would go to Dar-es-salam. Se eu fosse rica, eu iria para Dar-es-Salam, depois Timbuktu, Kathmandu, o seco Mar de Aral, Hara-Usa-Nuur, Beijing, um tour de cidades escolhidas só pela sonoridade dos nomes... Logo, já estou mergulhada no Mar Vermelho do mapa no final do livro, olhando os caminhos de trens, sondando as distancias com uma pequena régua, fazendo contas de preço de passagem aérea. If If If.

Uma pentelha sueca fica dando exemplos incrivelmente bem elaborados e ainda com um discurso feminista, falando que se ela fosse a avo dela em Estocolmo, ela já estaria trabalhando, já se ela fosse da América do Sul provavelmente estaria apenas cozinhando para o marido e cuidando dos filhos. O que? Salto das paginas do livro para a conversa em inglês. Ela esta querendo dizer que as pobres latino-americanas não tem trabalho, como se a vida das camponesas la de baixo fosse só esperar marido em casa, ai fico furiosa, começo a usar a porra do IF dando exemplos bem contra os escandinavos, IF eu fosse escandinava tambem acharia que o mundo é mesmo uma sala de estar para ricos, IF eu sueca fosse, também seria depressiva e branquela e sem graça. Felizmente, acaba a aula e eu não preciso acalmar-me porque o frio da rua é perfeito para esfriar a cabeça. Saio em desabalada correria agora no rumo daquele maledeto restaurante italiano.

A Piazza esta lotada de turistas que olham as bobagens dos dois palhaços de bicicleta. Procuro pelo Mike, mas não o vejo. Prendo minha bicicleta no alto, sempre procurando evitar que ela seja roubada. Como as ferramentas usadas para cortar as correntes são bem pesadas, quando a deixo assim presa contra a grade, mas com as rodas fora do chão, tem menos chance de que os larápios de bici cortem ou destruam as minhas trancas. Lá vou eu no rumo daquele pequeno pesadelo, suar a camiseta para tomar um avião no rumo de qualquer paraíso perdido no globo com suas passagens de preços tão tentadores a partir del aeropuerto internacional de Heathrow ou Luthon.

Chego e vou direto ao sub-solo trocar de roupa no cubículo dos empregados. Primeira tarefa depois de apertar o nó ridículo da minha gravata borboleta é encher os saleiros e recolocar bolinhas grãos de pimenta no moedor gigante de pimenta. É uma das paixões inglesas, pimenta moída na hora sobre o prato de macarrão ou pizza fumegante, o cheiro que sobe do prato para o nariz é delicioso mesmo, mas eu suspeito que o ritual serve para os ingleses acreditarem que eles são apreciadores da boa cozinha. O fato é que eu devo encher o moedor até a borda e deix’-lo no lugar de sempre, embaixo da escada, junto com as velas extras que ficam decorando a nossa cantina falsa dentro de garrafas de vinho Chianti.



Simon reclama que há três mesas com velas apagadas. Verdade. Mas tenho certeza de que os clientes preferem comida quente às velas. Ele não se comove e lá vou eu para a despensa buscar mais velas. Passo por um labirinto de salinhas onde as prateleiras armazenam caixas de queijo parmesão, orégano, sálvia, nozes, damascos secos, biscotti. A lâmpada está queimada. Chego tateando no escuro e acho um pacote de velas. Pego em meu avental uma caixinha de fósforos que guardo para acender o cigarro dos clientes, acendo uma vela e começo a voltar. Sinto apenas algo pastoso na sola do meu sapato, como se já não bastasse a maçã do jardim. E já é tarde demais para impedir que a vela caia sobre os galões de óleo e as caixas de papel. Tento apagar as labaredas que já sobem pelas prateleiras de madeira. Estou no escuro, iluminada apenas pelo fogo. Começo a tossir e encontro a maçaneta, sigo as instruções de subir correndo e avisar os colegas e evitar pânico. “Carlo, esta merda está pegando fogo”. Em menos de 15 minutos, estamos todos em frente ao Bella Ciao. Um calor insuportável vem lá de dentro, a cozinha está em chamas e uma fumaça preta sobe do telhado. Os bombeiros chegam com mangueiras e quebram as vitrines que dão para a rua. Por um instante, não escuto mais nada, me vejo sentada na calçada admirando o espetáculo. Nunca pensei que pudesse causar tanto estrago e no fundo tenho um certo prazer de assistir a tudo como em um teatro de fundo de quintal. Entre as caras espantadas dos britânicos e dos turistas, reconheço meu amigo palhaço da Piazza. Vou até ele, espremida pela multidão. Estou apenas com uma camisa de algodão e gravatinha e deve estar fazendo uns 3 graus. Peço para ele me dar um abraço. Ele apenas coloca um braço ao redor de meus ombros. Com seus lábios finos, me convida para um chopp e vamos para o pub Punch and Judy. Difícil caminhar, estou tremendo e agora tenho um frio gelado na barriga também.
Dentro do Punch, o assunto é o fogo que devasta o Bella Ciao. Eu estou com o avental de cintura do restaurante e o barman quer saber se alguém se machucou, detalhes e se aquele idiota do gerente está vivo, etc. “No, no, it was no so bad”. Mike, o palhaço, pede licença, e vamos sentar no escuro, sobre gordos barris de chope. Tomo uns dois pints e peço para o Mike me levar para casa, vou na carona da bicicleta dele. Chove um pouco de novo e vamos cruzando o Hyde Park, pela beira do Serpentine Lake. De repente dou-me conta do frio que está fazendo e já não quero ir para casa, abraço o palhaço pela cintura. Ele pára perto de um banco. Pergunta se quero ir para outro pub, perto da casa dele. Incrível como os ingleses são enrolados para perguntar a uma mulher se ela quer ir para a casa dele. Tudo bem, vamos a outro pub. Abrimos a porta e somos engolfados pela fumaça e pelo burburinho. Quentinho e gostoso. Peço no balcão outro pint e pro Mike um suco de laranja. Quero evitar que ele fique de porre e acabe dormindo a meu lado ao invés de fazer amor. Claro, a safada aqui já está planejando comer o pobre palhaço que a essa altura já está reclamando do suco, dizendo que não sente o sabor do álcool. Confesso que pedi suco puro para ele, sem vodka. Ele ri e bebe a minha cerveja. Eu dou um gole no suco. Mike coloca seu nariz de palhaço e beija a minha boca. Em menos de uma hora, estamos cansados e suados, sob as cobertas. E, confesso, que fazer amor com palhaço é bem divertido.

Pela manhã, acordo com as bolinhas que Mike joga uma a uma sobre minha cabeça. Tenho umas 15 delas ao meu redor, o que significa que dormi demais. “Phone call for you”. Atendo meu celular e é a Patrícia querendo saber de mim, o Simon anda louco ligando para a nossa casa e parece que eu tenho de dar um depoimento na polícia. Polícia? Carálio. Sou ilegal e ele sabe muito bem que não posso ir na polícia. Ligo para o inglês. Discussão acalorada, mas ele insiste em que não terei problemas, a polícia quer saber como o fogo começou, eles não tem nada a ver com o povo do Home Office, da imigração. O Simon só quer receber o seguro, tudo sob controle. Peço pro Mike ir comigo ao restaurante e à polícia. Ok. Lá vamos nós de novo na bicicleta voadora e o Mike entra na delegacia sem tirar o nariz vermelho.