novembro 05, 2009

E agora, cara pálida?

Link para artigo de opinião publicado no Diário Catarinense sobre crise de saúde no Vale do Javari

Viajar com bebês é uma diversão

Link para matéria da Revista Crescer sobre viagem com Victoria e Frank para a Patagônia

Chat sobre América do Sul on the road

Link para chat antigo de minha viagem pela América do Sul com a Farah

Matis localizam avião desaparecido no Javari - Nov 2009

Barbara Arisi
Doutoranda em Antropologia
Universidade Federal de Santa Catarina
O Vale do Javari, região de alta floresta na divisa entre Brasil e Peru, é um lugar extraordinário. Onde você fica amiga de uma mulher, auxiliar de enfermagem, que ajudou a fazer vários partos, salvou dois bebês Korubo e, ainda por cima, sobreviveu na última semana a um pouso forçado em pleno rio e uma noite na floresta? Em qual outro lugar do mundo há tantos povos indígenas morando ao lado de outros tantos povos considerados sem contato com a sociedade brasileira? Só mesmo lá, na Terra Indígena Vale do Javari, estado do Amazonas, segunda maior terra indígena do Brasil. No Javari, vivem 3.700 indígenas em 52 comunidades dos povos Matis, Korubo, Marubo, Mayoruna/Matsés, Kanamary, Tsohon Djapa e Kulina, além de cerca de sete ou mais povos considerados pela Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai como isolados, com pouquíssimo ou nenhum contato com o mundo dos brancos.
No coração dessa terra, no médio rio Ituí, vive o povo Matis, que localizou o avião desaparecido e passou a informação para as equipes de resgate. Graças a eles, foram encontrados nove sobreviventes dos 11 passageiros e tripulação a bordo. Eu sou antropóloga e estudo com o povo Matis. Ao todo, vivi nove meses com eles; esse ano, estive na região de abril a outubro a realizar trabalho de campo para minha pesquisa de doutorado em Antropologia para a UFSC. Além de exímios caçadores de queixada (porco do mato), macacos, caititu, mutum e diversos pássaros, são agricultores, coletores e pescadores. Os Matis correspondem à imagem que os ocidentais têm de povo exótico. Como escreveu o também antropólogo Philippe Erikson, trazem no rosto a “marca dos antepassados”. Suas tatuagens de listras sobre bochechas, têmporas e testa, seus brincos de concha e bastões faciais de açaizeiro, seu pendente nasal feito de outro caramujo, suas zarabatanas de até seis metros de comprimento, sua destreza no tiro de dardos são exibidos para documentaristas, turistas e são admirados mesmo por outros índios.
Quando soube na madrugada de quinta que um avião havia caído com o pessoal da vacinação, senti-me arrasada. Em fevereiro último, havia participado, com a delegação de 30 indígenas do Javari, da ocupação da sala de imprensa do Fórum Social Mundial, em Belém, a fim de exigir uma campanha continuada de vacinação na área. Entregamos um documento ao parlamentar europeu Vittorio Agnolotti que prometeu pressionar o Brasil via acordo bilateral União Européia e Mercosul e na recém criada Câmara Paritária América do Sul e Europa. O professor Makë Bush Matis apareceu no Jornal Nacional e até mesmo o único ganhador do Prêmio Nobel da Paz na América do Sul, escritor argentino Perez Esquivel, solidarizou-se conosco e escreveu duas cartas exigindo providências do governo Lula, entregou-as em março desse ano na Embaixada do Brasil em Buenos Aires, uma para o presidente da República, outra para o ministro da Saúde, José Gomes Temporão. De nada adiantou. A campanha de vacinação só começaria, atrasada, em outubro de 2009.
Ao receber a notícia do avião por e-mail, pensei “ai, certamente conheço alguém”, pois a cidade mais próxima da terra indígena, Atalaia do Norte, é bem pequena. Passei um dia querendo acreditar que o piloto conseguira aterrissar em segurança e perto de uma comunidade. No dia seguinte, ao ver no noticiário os sobreviventes sendo resgatados e, entre eles, minha amiga Magna, Maria das Graças Nobre, pulei pela sala de alegria. Havíamos morado na aldeia Aurélio durante 40 dias, em julho, e eu a conheço desde 2003. Em junho, assistimos juntas ao parto de um bebê Matis natimorto. Trabalhar na área de saúde do Javari não é tarefa para quem tem coração fraco. Apenas esse ano, entre os Matis, morreram quatro crianças e duas mulheres adultas, uma delas vítima de asma que teria sido salva se houvesse um balão de oxigênio e broncodilatadores. Faleceram no total seis pessoas em uma população de 330 índios. Ao lado de Magna, acompanhei pelo rádio que, em apenas um final de semana, três crianças Kanamary haviam morrido de desnutrição. O pólo base no médio Ituí, rio onde pousou o avião, é uma casa de madeira serrada com teto de palha, local impossível de trabalhar com a assepsia necessária. Faltam medicamentos, profissionais, não há nenhum dentista. As geladeiras alimentadas por placas solares, prometidas há anos, nunca foram instaladas. Por isso, as equipes de vacinação precisam ser transportadas por helicópteros.
Descontinuidade de ações e falta de vacinação a intervalos regulares deixaram o saldo de 80% dos adultos e 15% das crianças indígenas do Javari com hepatite. O serviço de saúde sempre foi precário. Em 1976, quando o povo Matis foi contatado pela FUNAI, morreu 2/3 da população, moravam em malocas longe do leito do Ituí. Trisca, funcionário da FUNAI, contou-me que transportou muitos Matis em suas costas; as casas semi-abandonadas estavam cheias de corpos. Os Matis chegaram a ser apenas 87 em 1983. A saúde era ruim quando estava sob responsabilidade da FUNAI, mas piorou de vez a partir de 1991, quando o Collor implantou a política de diminuir a responsabilidade do estado e transferi-la para entidades de direito privado. A Funasa passou a terceirizar os serviços de assistência através de conveniadas indígenas. A partir de então, descontinuidade de ações, falta de vacinação a intervalos regulares deixaram o terrível saldo de 80% dos adultos e 15% das crianças com hepatite, de acordo com dados da própria Funasa. Além disso, a malária é endêmica e há muitas outras doenças como filaria e tuberculose.
Ao mesmo tempo, o Javari é um lugar lindo e fascinante, onde a floresta é abrigo de onças, jacarés, sucuris, macacos, tracajás, jabutis, araras e outras aves diversas, com árvores imensas como samúmas, matá-matá, pau mulateiro e seringueiras. A área, hoje protegida pelos próprios indígenas, foi bastante explorada por patrões da borracha e madeireiros, entre o começo e o final do século XX. Em 1996, a Funai construiu o posto de vigilância na confluência dos rios Ituí e Itacoaí e a terra indígena foi homologada pelo presidente Lula em maio de 2001. Estive lá pela primeira vez em 2003, como tradutora de um jornalista neozelandês para fazer reportagem sobre os Korubo, grupo de 15 índios contatado pelo governo brasileiro em 1996. Assim, conheci a três Matis e fiquei amiga de um deles, Txema, que viria a ser meu “pai” na aldeia. Depois dessa experiência, resolvi estudar antropologia. Voltei para o Javari em 2006, passei dois meses na aldeia Aurélio e um mês a bordo de batelões e canoas pelos rios Curuça e Javari (limite de fronteira entre Brasil e Peru).

Creio que sou das poucas pesquisadoras que tem a chance de haver defendido dissertação sobre contato de um povo indígena com o governo e, apenas três anos depois, para a tese, poder observar e participar das relações desse mesmo povo com o mercado internacional de TV e turismo. Os mesmos homens e mulheres contam de quando viviam na floresta, sem os brancos, como cortavam as contas de seus colares de murumuru com os dentes pois não tinham facas ou limas, e explicam como hoje ganham dinheiro com turistas alemães e cineastas sulcoreanos.